SER MULHER… E QUERER PRATICAR KUNG FU

Quando decidi ir sozinha para a China, em julho de 2019, e planejar meu itinerário — que passaria por Shaolin e Wudangshan — recebi vários comentários da minha família, incluindo um que ficou marcado:
“Mas, sendo mulher, você tem certeza de que pode ficar em Shaolin?”

Eu não tinha pensado nisso antes, e é verdade que, no imaginário coletivo, quando pensamos em Shaolin, visualizamos monges com túnicas laranjas, homens. As mulheres parecem invisíveis nesse lugar. Esse foi meu primeiro momento de dúvida antes de partir: ser uma mulher viajando sozinha e querendo aprender artes marciais… Meu estômago se revirava só de imaginar chegar a um mundo exclusivamente masculino.

A segunda dúvida era meu nível no kung fu… que simplesmente não existia. Eu nunca havia praticado artes marciais seriamente e não estava em boa forma física. Sempre tive o hábito de desvalorizar minhas capacidades físicas e não confiar em mim mesma no esporte. Era, portanto, um desafio duplo. Viajar sozinha pela China, na minha idade, sem falar uma palavra de chinês já era algo grande; ir praticar artes marciais no coração do seu berço cultural era outra história.

DESCONSTRUIR MITOS

Logo ao chegar, tive a oportunidade de perceber que muitos dos meus medos faziam parte de um grande mito. Não só havia mulheres em Shaolin e Wudang (muitas delas excelentes nas artes marciais), como eu também não era a única iniciante.

Percebi também que havia tornado esses lugares quase sagrados. Como muitos, fui embalada por todas as ilusões que cercam a prática marcial. Parti com a cabeça cheia de imagens quase mágicas. Sentia-me como uma estrangeira, esperando uma espécie de iniciação para entrar nesse mundo.

Esse mito é amplamente mantido, tanto na China quanto no Ocidente, e pode facilmente desencorajar. Parti sem pensar demais ou criar expectativas excessivas sobre minha chegada à escola, mas Florian me tranquilizou, garantindo que eu seria bem-vinda.

Uma das grandes surpresas ao chegar foi descobrir um lugar simples e acolhedor, onde as artes marciais são abordadas de forma direta. Notei também uma verdadeira vontade de se abrir ao mundo e à comunidade não chinesa, mantendo ao mesmo tempo a autenticidade da prática marcial e da cultura local.

Curiosamente, senti-me em casa assim que cruzei o portão da escola, mesmo com tudo sendo completamente novo para mim. Além da minha facilidade de adaptação, o ambiente favorecia a proximidade, tanto com estudantes internacionais quanto com alunos locais. Aproximei-me dos professores e, apesar da barreira linguística, foi possível criar laços fortes, amizade e cumplicidade.

TORNAR-SE FORTE

O treinamento foi particularmente intenso para mim, que nunca havia praticado esportes antes. Descobri tudo nas artes marciais. Aprendi a relaxar, a me tornar mais forte, mais resistente, a coordenar melhor meus movimentos. Aprendi a tomar consciência do meu corpo, de seus limites, mas também de tudo aquilo que ele é capaz de fazer.

Antes, eu era uma grande leitora, sempre com livros nas mãos. De repente, passava meus dias no meio da natureza aprendendo uma arte marcial. Algo completamente novo para mim.

Ao final de cada treino, de cada dia de prática (Um dia em Wudang), sentia uma satisfação que nunca havia experimentado antes: a do esforço físico bem-sucedido.

Sem perceber, evoluí rapidamente e aprendi muito. Houve momentos de raiva e frustração, principalmente quando o cansaço se acumulava diante de um exercício que eu não conseguia realizar. Mas, em todas essas ocasiões, meu professor ou os outros alunos sempre encontravam as palavras certas para me incentivar, me ajudar a superar a mim mesma e ampliar constantemente meus limites — limites que eu nem imaginava poder ultrapassar.

De forma surpreendente, foi ao viajar sozinha para a China que aprendi a me conhecer de verdade. Humildade e autoconfiança, forjadas sob horas de treino, fadiga e esforço, são os dois maiores tesouros que trouxe dessa viagem.

Claro, viajar sozinha já é uma experiência transformadora. Mas foi principalmente a prática do kung fu que me permitiu tomar consciência da minha força e do que sou capaz de realizar com trabalho e paciência.

Porque paciência é essencial quando precisamos repetir, dez, vinte, cem vezes, o mesmo movimento que parece simples à primeira vista. Às vezes é difícil aceitar isso, e o ego leva um golpe — o que raramente é algo negativo.

Acredito que consegui superar a frustração que sentimos ao perceber que as coisas levam tempo para serem bem feitas. E, para isso, não vejo ensino melhor do que a prática exigente e profunda do kung fu.

Pascaline